A evolução do ser humano se dá pela transgressão de algo estabelecido. O processo de transgressão se inicia no próprio Criador, quando Ele implanta uma espécie de primeira consciência através de uma proibição.
Logo após comerem o “fruto proibido” Adão e Eva tornam-se conscientes de que estavam nus, eles se cobriram ao evidenciarem o óbvio. Pois, na verdade, não existe outro nu além daquele que se percebe nu. A nudez não se sustenta sob qualquer forma de naturalidade porque, por definição tanto bíblica como do bom senso, não há nudez na natureza. O ser humano se fez o mais vestido e o mais nu dos animais.
A partir do momento em que a consciência traz a percepção do nu ao ser humano, este passa a ter uma condição de animal moral, ou seja, ele é um nu que se vê nu e por isso precisa se esconder dos outros e de si mesmo. É este animal moral que inaugura toda moral, toda tradição, toda religião e faz com que toda sociedade se volte para “vestir” a nudez do homem.
Por “alma” não devemos entender nenhuma outra parte distinta do corpo, ela é o nosso consciente da necessidade de evoluir, a parcela de nós capaz de romper com os padrões e com a moral. O próprio texto bíblico não apresenta dualidade na essência do ser humano, mas sim a possibilidade da escolha – da obediência e da desobediência. A necessidade de uma dualidade que gera o termo “alma” se encontra nessa capacidade humana de optar entre cumprir ou transgredir. A alma seria o nome que se busca dar à presença de um elemento evolucionário do próprio corpo que, por um lado, nos impõe uma conduta rígida e comprometida com sua forma de ser, mas que, de tanto em tanto, com maior ou menor importância, trai a si mesmo e se reconstrói.
Uma vez que a imortalidade do animal se dá na reprodução, o animal moral faz da tradição um instrumento fundamental para sua preservação. A tradição é basicamente composta pela família – estrutura moldada para melhor atender aos interesses reprodutivos em determinado contexto socioeconômico; pelos contratos sociais – que proporcionam a manutenção de uma convivência com melhores condições de preservação da vida e; pelas crenças – que dão respaldo teórico e ideológico à preservação.
Todo processo de mudança inicia-se por uma traição, o traidor é um transgressor que propõe outra lei, outra realidade, outra tradição. É impossível mudar sem se expor ao erro absoluto. A mutação é imperativa para a continuidade, portanto a traição é da ordem da transcendência. Transgredir é transcender, e nossa história não teria mártires no campo político, científico, religioso, cultural e artístico caso fosse possível transcender sem colocar em risco a sobrevivência da espécie. Não há tradição sem traição, nem traição sem tradição; da mesma forma que a tradição precisa da traição, que a preservação precisa da evolução, que o acerto de hoje depende do erro de ontem, o contrário também é verdadeiro.
O traidor é sem dúvida alguém que se expõe, mas, diferentemente do que se imagina de um traidor, é bastante difícil sê-lo abertamente. Muitas vezes a palavra “fraco” é associada ao traidor, quando o que este menos representa é “fraqueza”. É preciso muita coragem para trair, porque o traidor se expõe ao revelar segredos de sua intimidade.
O traído sente no corpo a dor da transgressão e na alma a dor de seu apego, todo traído é alguém que peca pelo apego, pois uma pessoa só pode se sentir traída se está às voltas com excesso de apego. A condição de traído é a mais perversa condição de luto que pode ser vivida pelo ser humano.
Aquele que engana a si mesmo é mais perverso do que o que engana os outros. Isso porque
aquele que engana os outros está muito mais próximo de cair em si do que aquele que engana a si mesmo.
Para tudo que é compreendido como certo há, em determinadas circunstâncias, uma conduta errada que pode representá-lo melhor do que a aparentemente certa. O certo e o errado são sempre situações relativas e não absolutas. As posturas reacionárias são as que afirmam que, para cada situação e momento, há um “bom e correto” absoluto. As posturas revolucionárias, por sua vez, afirmam que “bom” e “correto” são inconciliáveis. Em posturas menos radicais, reconhece-se que a arte de viver é compreender quando o “bom e correto aos olhos do Criador” é mais “bom” do que “correto”, ou mais “correto” do que “bom”.
Transgredir é um processo, e o momento em que nos voltamos para outra direção marca um novo segmento de nossas histórias individuais e coletivas. O corpo e sua moral, por sua vez, percebem esse ato com uma “desorientação”. No entanto, transgredir é necessário. Duas coisas ficam comprometidas pela ausência de transgressão: a qualidade de vida e a possibilidade de continuidade.
A transgressão das próprias convicções é o maior desafio lançado ao ser humano que deseja evoluir, pois ele terá de sair de sua cômoda posição para a luta, que é um processo instável em busca de um novo equilíbrio. Trair a nós mesmos e nos surpreendermos conosco é algo de grande força.
Na trajetória da sobrevivência, a “mesmice” muitas vezes é o caminho curto, o mais simples, e, também, o que tem os custos mais elevados, é o curto caminho longo. Ir pelo caminho mais simples e mais curto é uma lei evolucionista, o ser humano tende a se mover na direção mais imediata e curta. Porém as chances de sobrevivência dos que percorrem este caminho são bem menores, normalmente são sobreviventes aqueles que optam pelo longo caminho curto.As encruzilhadas que a vida nos traz são de grande importância, elas são mais que meras opções de acesso pelo longo caminho curto ou pelo curto caminho longo, são opções de sobrevivência, onde o curto caminho longo pode não levar a lugar algum.
Viver exige sacrifícios, mas devemos ter cuidado para não nos sacrificarmos ao nada. Não podemos temer o que os outros irão pensar. Não devemos temer nossa própria auto-imagem, pois esta, tal como nossa moral, é um instrumento do corpo que não aceita se ver em “outro” corpo.
A vida saberá nos julgar não apenas pelas “perversidades” que acreditamos poder evitar, mas também pelas “tolices” que nos permitimos.Aquele que não faz uso de todo o potencial de sua vida, de alguma maneira diminui o potencial de todos os demais. Se fôssemos todos mais corajosos e temêssemos menos a possibilidade de sermos perversos, este seria um mundo de menos interdições desnecessárias e de melhor qualidade.
Construir algo é saber destruí-lo a seu tempo. Somente no dia em que a traição não ferir o traído ou a tradição, mas despertar ambos para novas possibilidades que se descortinam através dela, surgirá um mundo muito além da tolerância – um mundo de apreciação.